Eu sou um filho de Setúbal que aprendeu a amar Lisboa. Uma espécie de filho adoptivo da Cidade.
Aprendi a amar Lisboa pela sua densidade, pela sua textura humana e pela sua matriz histórica e física que traduz esses séculos de humanidade.
Aprendi a amar as avenidas largas e os becos esconços.
O Alvito, a Ajuda, a Madragoa, Alfama, Mouraria, Beato e Graça, mas também a Alameda, a Liberdade, o Terreiro.
Aprendi a amar o Jardim da Estrela, a Tapada das Necessidades, o Miradouro Sophia de Mello Breyner Adresen, o Jardim Botânico e o Jardim do Torel. Aprendi a contemplar o Tejo em Alcântara, no Terreiro do Paço e no Parque das Nações. Aprendi a gostar das tascas que não conhecia e que por bairrismo setubalense me recusava a visitar. Aprendi a gostar da poesia a cheirar a sardinha e a comprar rifas na "voz do operário". Aprendi a não me chatear com uma multidão torrencial a disputar cervejas nos santos. Aprendi a decifrar que Lisboa não tem sotaque porque tem todos os sotaques do mundo.
Que Lisboa não tem prato típico porque tem todos os pratos típicos. Que em Lisboa há tanto Minho como Alentejo.
Estudei e trabalho em Lisboa há mais de dez anos. Comecei por conhecer apenas as linhas metro sem qualquer relação com o território superficial da cidade. Hoje, consigo percorrer quase todas as ruas sem GPS e ir de moto de Monsanto aos Olivais em dez minutos. Essa vivência em Lisboa, de Lisboa, dá-me e deu-me uma imagem de Lisboa e um sentir de Lisboa.
Uma imagem de Lisboa, de relíquias turísticas, de Praças Bonitas e de arranjos florais. Uma imagem de Lisboa de panfletos escritos em inglês e alemão. De velhinhos estrangeiros em autocarros sem tejadilho. Uma imagem de Lisboa moderna no Parque das Nações, nos centros comerciais do tamanho de vilas. Uma imagem da Lisboa do Terreiro do Paço, dos chalets do Restelo, da Marginal de luxo ali já na fronteira com Oeiras. Uma imagem de Lisboa por onde passam carros novos e por onde os antigos não podem circular. Uma imagem de Lisboa, cultivada pela distância dos órgãos de poder autárquico da Cidade, de desenvolvimento meramente físico, de melhoramento paisagístico das regiões da elite. De ópera no São Carlos. De concertos no Coliseu. De estética desportiva no Holmes Place e outros mercados da aparênccia. Uma imagem do roteiro turístico de Lisboa por onde as estradas e arruamentos estão arranjados, por onde as casas velhas estão tapadas com largos panos com anúncios de obras que nunca vêem ou com anúncios de fundos de investimento bancários. Esta é a imagem de Lisboa para o visitante. Talvez mesmo para quem aqui venha trabalhar e não viver.
E depois há um sentir Lisboa. Não a Lisboa da constante campanha eleitoral de António Costa, não a Lisboa dos carros novos e dos arruamentos cuidados. Há a Lisboa do milhão de casas abandonadas, destruídas. A Lisboa dos 2 mil desalojados. A Lisboa de Alfama escavacada, das ruas esburacadas da Estefânia, do movimento associativo sem instalações e sem apoio. Há a Lisboa das fábricas encerradas, dos milhares de desempregados, dos jovens forçados a sair. A Lisboa da toxicodependência e da falta de ocupação dos tempos de livres dos jovens. A Lisboa dos complexos desportivos encerrados. Das Áreas Urbanas de Génese Ilegal abandonadas. A Lisboa do lixo no chão, dos balneários municipais encerrados ou descuidados. A Lisboa das Torres do Alto da Eira, dos Bairros da Gebalis, dos Olivais ao Alto da Ajuda ou a Benfica. A Lisboa de quem tem as janelas partidas há meses, de quem lhes cai a ombreira da porta aos pés. A Lisboa do trânsito caótico e da falta de transportes públicos. Aquela Lisboa de quem já não consegue ir ao Centro de Saúde porque lhe retiraram a carreira, ou de quem já não vai à Ribeira porque não pode pagar o Bilhete do Elevador da Bica. A Lisboa de quem não consegue dormir no Bairro Alto.
Há a imagem de Lisboa, bem cuidada, bem tratada por especialistas do marketing. E depois há o sentimento. Aquele gerado por um exercício de poder que virou as costas às necessidades da população, que dedicou milhões aos jogos especulativos enquanto lançou um manto de aparente modernidade sobre a cidade. O velho do bairro que não consegue caminhar ao longo dos buracos do escasso passeio, que não tem elevador na casa da Gebalis ou mesmo porta da rua, que não tem autocarro para o trazer ao centro da cidade, esquece tudo isso porque viu na TV um bonito Terreiro do Paço ou uma modernaça Rotunda do Marquês. A mãe que não tem onde estacionar o carro e que deixa o seu filho no infantário privado porque não há público esquece esse problema porque viu nos jornais que António Costa inaugurou uma exposição.
O jovem sem emprego, ali das Galinheiras, que resitiu à toxicodependência, que não tem acesso ao desporto público, nem à cultura que só vive no centro da cidade, nem à colectividade fechada por falta de apoio, esquece tudo isso quando vê que em Lisboa há um Concerto da moda a que nunca poderá ir.
Gosto das duas Lisboas, da imagem e da vivência, da que se vê e da que se sente.
E Lisboa é mais gente do que gente é quem dessa gente se usa.
Há a Lisboa da troca de créditos de construção, da permuta ilegal de terrenos, das grandes negociatas, da desindustrialização, do escasso pré-escolar, a das freguesias agrilhoadas e extintas. A do PS e PSD. E há a Lisboa dos bairros, das pessoas, onde de pouco vale um Terreiro lavado quando as ruas estão imundas e onde de pouco vale uma Câmara Municipal para cortar fitas a interesses privados e hotéis de charme quando há mercados velhos, escolas a cair, saneamento por fazer, limpeza urbana sem se fazer, casas a cair. Uma Lisboa que junta qualidade de vida e igualdade no acesso a essa qualidade. Uma Lisboa que não é só para quem pode, mas para todos os que aqui ainda conseguem e querem viver. Uma Lisboa assim é uma Lisboa CDU. Uma Lisboa de Abril.
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3 comentários:
Eu conheci outras Lisboa. Mas também conheço esta.
É uma Lisboa bonita e com Futuro, esta que queremos. Uma Lisboa de Abril!
Lisboa das sete colinas,
é uma terra de encantos,
é uma cidade com Santos,
e com pobres nas esquinas.
Tem o Castelo da mourama,
tem o Aljube e o Limoeiro,
tem do Paço,o Terreiro,
e tem Mouraria e Alfama.
Tem Sant'António e S.João,
tem S.José e Santa Maria,
tem Santa Justa e Santa Luzia,
e tem Santana e Sant'Antão.
Eu, que lisboeta me confesso (de Campo de Ourique) te saúdo e agradeço.
A ti, que nasceste em Setubal, eu, que tenho as raízes no Zambujal, te abraço
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