Antes da rebaldaria, da selvajaria, da ocupação das nossas terras e fábricas, nós podíamos exigir-te que trabalhasses de sol a sol, sem salário mínimo. Antes de Abril, nós podíamos ditar-te horários, salários, férias.
Antes de Abril, com o Estado a nosso lado, nós podíamos distribuir a riqueza como bem nos aprouvesse, à custa da vossa miséria, exploração e iliteracia. Ainda antes de 1940, 4,3% das nossas sociedades anónimas já detinham 53% do capital do país. E nos campos abaixo do Tejo, toda a terra era minha. Nessa altura é que as coisas funcionavam bem: a polícia não servia para te proteger, não tinhas subsídio de desemprego o que te obrigava a estares disponível para trabalhar pelo que eu quisesse pagar-te. Velhos tempos.
Mais tarde, começaste a chatear-te com a tua taxa de mortalidade, com a tua baixa esperança de vida, com seres parte de uma maioria de 60% da população que não sabia ler nem escrever. E isso foi um problema porque me obrigaste a permitir a entrada de capitais estrangeiros nas estruturas accionistas das minhas empresas porque sozinho não podia combater-te.
Mas nas minhas terras, quem mandava era eu antes de mas roubares. Felizmente, o Governo de Mário Soares e o Ministério de Barreto foram sensíveis às minhas necessidades e deram-mas de volta com direito a uma pequena indemnização. Mas pronto, Cavaco Silva, depois compensou-me dando-me uns milhões de contos para eu te mandar para o olho da rua e deixar as terras ao abandono, investindo o dinheiro no meu bem-estar que é, afinal de contas, o que interessa.
Claro que tu gostas dos teus privilégios na saúde, mas onde fica o meu direito a vender-te apoio na doença?
Claro que tu gostas dos teus privilégios na Educação, mas onde fica o meu direito a um escravo qualificado e submisso? E o meu direito a vender-te o Ensino que me convém que adquiras?
Claro que gostas do teu privilégio chamado subsídio de desemprego, mas onde fica o meu direito a pagar-te apenas o que me apetecer para que trabalhes para mim?
Claro que tu gostas do teu privilégio de teres transportes públicos, mas onde ficaria o meu direito a organizar como quero a tua vida e ainda fazer dinheiro com os bilhetes?
Claro que tu gostas do teu privilégio de ter reforma, mas onde ficaria o meu direito a ficar com o dinheiro da segurança social em fundos que controlo para investir onde me apeteça?
Claro que gostas do teu privilégio de te reformar quando chegas a velho, mas onde ficaria o meu direito a penalizar-te na reforma por deixares de trabalhar tão novinho?
Claro que gostas do teu privilégio de beberes água quando te apetece, mas onde ficaria o meu direito a encher a piscina que tenho à beira-mar e de te cobrar por dares de beber aos teus filhos?
Claro que gostarias de ter o privilégio de passear na praia, na serra, na floresta, mas onde ficaria o meu direito a construir lá casas para os meus amigos e a vender bilhetes para os teus filhos irem lá na visita de estudo?
Claro que gostas do privilégio de ter teatro, circo, poesia, literatura, dança, música, mas onde ficaria o meu direito a vender-te lixo para te entreter?
Claro que gostas do privilégio de praticar desporto, mas onde ficaria o meu direito a enfiar-te futebol pela goela enquanto te neutralizo e faço uns milhões em publicidade?
Claro que adoras esse privilégio de ver as mulheres ganhar o mesmo que os homens, mas onde ficaria o meu direito a pagar menos a todos?
Claro que gostas de ter o privilégio de ter polícias para te dar segurança, mas onde ficaria o meu direito a ter polícia que te espanque quando me chateias?
Claro que gostas do teu privilégio de ver o teu filho feliz na creche gratuita, mas onde ficaria o meu direito de cobrar para que tenhas onde o deixar enquanto vais trabalhar?
Enfim...
Claro que tu gostas do teu privilégio de poderes votar em quem queres, mas onde ficaria o meu direito a escolher quem quero para capataz?
Sejamos pragmáticos. Eu fico com 60% do total da riqueza gerada em Portugal. Tu ficas com 40%.
Porém, como tu és um abusador dos serviços do Estado, pagas tu 73% do seu funcionamento e eu, por enquanto, ainda pago 27%. Mas, estou convencido de que, por este andar, chegará o dia em que o pagarás todo para que ele em sirva a mim exclusivamente. É um bom contrato social: tu pagas, eu sirvo-me.
Continuemos o pragmatismo: para quê gastar 6 mil milhões de euros anuais no funcionamento de escolas, quando temos 7 500 milhões de juros anuais para pagar aos meus amigos lá fora que depois me dão sempre qualquer coisa? É que isto não dá para tudo...
É por isso que é preciso reconfigurar o Estado. Porque há despesas que não tens de fazer para que o estado me sirva. Porque escusas de gastar em educação, saúde, água, saneamento, ambiente, cultura pois tudo isso eu te vendo, embora um pouco mais caro, é certo. E sim, com um bocadinho menos de qualidade. Mas assim libertamos os teus cada vez maiores impostos para o que importa: os meus juros e os meus subsídios e indemnizações só por ter de te aturar.
Assim sim. Um estado para mim, pago por ti.
Mas nunca, nunca me ouvirás ser tão sincero. Que isso da verdade, é coisa de revolucionário.
Assim sim. Um estado para mim, pago por ti.
Mas nunca, nunca me ouvirás ser tão sincero. Que isso da verdade, é coisa de revolucionário.
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