sexta-feira, 29 de outubro de 2010

paredes brancas, mentes em branco

Já tive a oportunidade e o prazer de participar na pintura de inúmeros murais e pichagens políticas, principalmente promovidos pela organização da Juventude Comunista Portuguesa. Aliás, pode até dizer-se que comecei assim a minha militância em 1994. Lembro bem a primeira vez que pintei, num muro de contenção de terras de Setúbal, pegando num pincel colectivo. Alguns dias depois das cargas policiais sobre inúmeras manifestações populares e estudantis - ordenadas por cavaco Silva - pintámos na parede uma figura que se espancava a si própria com uma moca sob o olhar da polícia de intervenção. Lia-se "AVISO: ajude a polícia de intervenção, bata-se a si próprio." Nos escudos dos polícias desenhados no muro, via-se uma laranja simbolizando o PSD no poder e no comando das forças policiais que agiam por ordem política.

Durante o fascismo, as paredes estariam eventualmente mais brancas, mas o povo estava amordaçado. Uma vez por outra, uma pichagem marcava um acontecimento, um assassinato político, assinalava uma manifestação de solidariedade para com os comunistas ou democratas presos, apelava a uma luta ou uma greve. Durante o fascismo, pintar uma parede com uma mensagem política, independentemente da propriedade, era um crime punido pesadamente. As paredes estariam limpas, mas o mundo, as cidades, eram mais feias.

Aos muros brancos, ou limpos, pode corresponder não uma vontade colectiva mas uma imposição oligárquica. A sensibilidade estética colectiva é também fruto de uma relação de classe, de uma ideologia dominante e, como tal, um meio higienizado (como o que cada vez mais vivemos) gera uma apologia do asséptico. No entanto, quando a imposição é submiliminar e a manipulação ideológica de massas é sub-reptícia, cria-se a ilusão de que não existe imposição. A percepção de massas, embora não seja apenas isso, é também a soma das percepções individuais. A política contra a arte urbana, a expressão política, a liberdade ideológica parte do pressuposto de que a "guerra social", a luta de classes, se extingiu e que hoje todos os interesses se debatem em pé de igualdade. Ora, isso não é verdade.

Por isso mesmo, o direito de expressar por todas as formas uma legítima posição posição política, desde que sem provocar dano ou prejuízo ao colectivo, e desde que reversível, será sempre um direito hierarquicamente superior ao de desejar ver as paredes limpas. Ou seja, o meu direito a passar por muros brancos porque gosto deles brancos não pode sobrepôr-se ao direito de expressar a minha opinião política nesse muro, desde que daí não decorra a destruição parcial ou total da função do muro ou a corrupção de um elemento estético valioso, como um monumento.

Claro que a utilização da propriedade privada para efeitos de pintura mural deve depender de uma aceitação do proprietário, muito embora a parte exterior do muro seja de uso colectivo, dada a sua exposição. Assim, mesmo um privado que exponha um muro à via pública deve estar sujeito a regras e às normas que regulam a via pública. Nesse sentido, todos os muros deveriam ser "pintáveis" desde que não exista aviso em contrário por parte do proprietário. Aliás, o mesmo se passa com a colagem de cartazes: um proprietário que não queira cartazes afixados na sua propriedade afixa um aviso nesse sentido. Caso contrário, expõe-se às normas de utilização da via pública. O revestimento de uma parede exterior, de um muro, etc., tem objectivamente um uso colectivo, ainda que meramente estético, independentemente da propriedade do edifício.

O julgamento que fazemos do papel da pintura mural está intimamente relacionado também com o grau de consolidação democrática que julgamos existir, que percepcionamos. O facto de existir um sistema que esconde as suas assimterias, as suas desproporções, que reprime e oprime as tendências divergentes, não significa que não persistam interesses revolucionários ou meramente contestatários. O direito de expressar uma posição política através da pintura, assinada e sobre a qual se assume uma responsabilidade política de autoria, não pode ser ultrapassado pelo gosto de ver paredes brancas. Igualmente, a utilização das paredes para expressão artística, desde que identificável o autor, não deve ser sumariamente considerada crime, mas apenas em caso de se verificar dano decorrente ou queixa justificada por parte do proprietário.

Não deixaram de pintar os comunistas, os anarquistas, e outros antifascistas, durante os períodos mais negros das ditaduras por todo o mundo, não será agora, em nome da democracia que nos proíbem de pintar. Muitos e muitos murais, muita poesia, muita letra de revolta, muitos muros sujos de raiva e revolta, muitos gritos pintados, muita tinta libertária, libertadora, revolucionária!

Prefiro viver numa cidade, num país, livre e de paredes pintadas, que numa terra higienizada, onde a democracia e a liberdade sucumbem à monocultura, à apatia, à sacralização do silêncio, mesmo que todas as paredes e muros se mostrem imaculados.

5 comentários:

jal disse...

Comento apenas para te dizer que me lembro bem da pintura desse mural e do «carrinho» em que transportámos as tintas desde o CT até esse muro.
E a propósito deste assunto recordo um outro mural (na Av. Portela) que dizia: «Não comemos criancinhas! Adere à JCP!» no âmbito de uma campanha concelhia de recrutamento que deu muito que falar.

Sobre as paredes limpas e o zelo policial, lembro-me de outros murais em que a sua pintura foi abruptamente interrompida pela polícia e lá ia eu à esquadra falar com os senhores agentes que haviam apreendido os materiais, conduzindo os militantes da JCP à esquadra para identificação, no meio de uma série de disparates.
E perante a pergunta: com que base legal interromperam esta actividade partidária? a resposta era o silêncio e o vão se lá embora que nós também não sabemos mais... se quiser venham cá amanhã falar com o superior hierárquico.
E lá fomos...

miguel disse...

Bem me lembro, camarada. Dos murais todos que referes e de tantas actuações da polícia nesse sentido de impedimento.

Bem recordo, quando a Polícia era ali ao lado da PJ, as tuas palavras: "se não nos devolver as tintas eu faço um requerimento não-sei-das-quantas e o sr tem não-sei-quantos dias para me responder POR ESCRITO".

E bem me lembro que sempre continuámos a pintar os muros da cidade. E não consta que por isso o povo setubalense alguma vez se tenha virado contra a JCP ou PCP.

Haverá é sempre quem não se conforme com o que o povo realmente pensa e continue a querer que pense outra coisa diferente.

Se o que lá estiver escrito for justo, se tocar as necessidades e expressar a revolta popular, então o último ofendido pela parede pintada é o povo ou o jovem ou o trabalhador. Mas os que mandam na polícia não permitem que o povo possa ser livre de pensar. Paredes brancas, mentes em branco.

jal disse...

«Paredes brancas, mentes em branco» de preferência envoltas em arame farpado e com modernos sistemas de videovigilância a proteger a imaculada brancura.

A questão, como bem a colocas, é a de saber a quem serve a neutralidade de um espaço público descontaminado de qualquer mensagem.

Mais, quando em diversas acções unitárias, pegámos em tinta branca para intervir no espaço público limpando mensagens de ódio e racismo ficámos sempre com a sensação que o problema não residia na brancura, mas naquilo que fere essa brancura.
Alguém se lembra de ouvir falar em nazi incomodado por pintar uma parede?
Alguém ouviu os arautos da defesa do espaço público neutro a criticar tais inscrições?

Tá na laethanta saoire thart-Cruáil an tsaoil disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
samuel disse...

Vivam as paredes que falam!

Abraço.