I. Da quantidade e da qualidade
O Ensino Especializado das
Artes em Portugal, e em particular o Ensino Especializado da Música, está
sujeito ao mesmo conjunto de constrangimentos que o Ensino dito regular. Isso
significa, todavia, que está ainda mais fragilizado que as vias ditas “comuns”
na medida em que a experiência de ensino especializado não se generalizou nem
consolidou à mesma escala que as restantes componentes da Escola Pública. Ou
seja, o Ensino Especializado da Música, pela sua reduzida expressão territorial
na Escola Pública, pela subvalorização dos seus trabalhadores e professores,
pela insuficiência do investimento para a sua ampliação e fortalecimento e
pelos impactos tremendos resultantes do chamado plano de “Refundação do Ensino
Artístico”, (apresentado pelo ministério liderado por Maria de Lurdes
Rodrigues) encontra-se ameaçado na sua qualidade, democraticidade e mesmo na
sua existência enquanto resposta pública.
A existência de um reduzido
número de escolas públicas de ensino especializado da música: Instituto
Gregoriano, Conservatório Nacional, Conservatório de Coimbra, Conservatório do
Porto, Conservatório de Braga e Conservatório de Aveiro que se encontram
distribuídas apenas pelo Litoral e do Tejo para cima é um factor que impede a
concretização de uma política de formação musical e democratização do ensino,
que dificulta a detecção de talentos baseada numa formação precoce massificada
e que não permite o encaminhamento e acompanhamento dos jovens que busquem a
formação profissional e académica em Música, nem tampouco detectar os jovens
que, pela suas características próprias, possam revelar especial talento para a
execução e interpretação musical ou composição.
Ao mesmo tempo, um
investimento no Ensino Especializado da Música muito aquém das necessidades,
não apenas degrada o património de saberes acumulado ao longo de gerações, como
dificulta a capacidade de intervenção territorial das escolas de música e
limita a qualidade do ensino ministrado nas instalações públicas, quer seja por
falta de meios materiais ou mesmo pela desvalorização constante a que estão
sujeitos os trabalhadores e professores do ensino artístico – precariedade
laboral, desvalorização salarial -. Para compreender o contexto nacional e o
posicionamento que o meu Partido assume é necessário também ter em conta o
patamar de desenvolvimento do Ensino Especializado, conhecer as suas limitações
e eliminar confusão e mistura de conceitos e de práticas que em nada contribuem
para o aprofundamento do ensino da música e para a apropriação da técnica e da
arte pela população.
Em primeiro lugar, o reconhecimento de que a resposta
pública está aquém do necessário. Em segundo lugar, reconhecer o papel que o
ensino supletivo – apesar de não ser a resposta para o desenvolvimento e para o
futuro – desempenha num contexto em que a resposta articulada e integrada é
limitada. Em terceiro lugar, identificar o que têm sido as práticas e incursões
no âmbito da educação musical no primeiro ciclo e distinguir claramente o que é
ensino da música do que é o contacto com a música que se tem nas chamadas
“actividades de enriquecimento curricular”.
A lei de bases do Sistema
Educativo contém as respostas para grande parte dos problemas com que o país se
confronta no âmbito do ensino especializado das artes, pois um dos principais é
precisamente a base curta da pirâmide formativa que impede uma formação
artística de massas, que não eduque apenas “públicos” mas que, essencialmente
eduque “criadores” que por isso se tornarão “públicos”.
A lei de bases assegura
uma formação obrigatória e plenamente massificada de todos os que frequentam o
ensino básico, nomeadamente no plano da música e das artes. No entanto, até
hoje, nenhum Governo cumpriu esse desígnio da lei, nenhum Governo dotou as
escolas do ensino básico dos professores em regime de coadjuvação que pudessem
elevar o ensino artístico e o ensino da música ao patamar da dignidade. A opção
de gerar uma oferta facultativa através de professores ainda mais
desvalorizados que os restantes, através das “AEC” tem vindo a revelar-se
prejudicial à elevação do conhecimento artístico da população por motivos
vários que não podemos detalhar nas linhas estreitas de que dispomos.
A possibilidade de criar
estabelecimentos de ensino secundário especializados foi também subaproveitada
no plano público e é hoje colmatada pela criação de cursos de índole
profissional ou profissionalizante. Se por um lado, o surgimento desses cursos
demonstra o interesse que os jovens portugueses têm pelo ensino da música e o
fascínio colectivo que o nosso povo tem pela criação e fruição culturais; por
outro lado, não dá resposta plena à formação académica dos jovens, já que são
cursos orientados para a inserção no mercado de trabalho, não sendo muitos
deles sequer artísticos, contemplando prioritariamente os aspectos técnicos da
formação.
O alargamento da resposta pública (por via da abertura ou criação de novas instituições ou pela nacionalização das escolas privadas dispostas a tal), nomeadamente do número de
estabelecimentos, é uma condição essencial para a elevação da
qualidade/quantidade do ensino especializado da música. Tal como nos dizem as
leis da dialéctica, existe uma ligação inquebrável entre qualidade e
quantidade: o alargamento da base de captação e o alargamento da formação de
nível secundário representariam igualmente o surgimento de mais
artistas/intérpretes de elevado nível. Tal é válido para o conjunto das artes,
da dança à música, passando pelas artes plásticas. Se todos os estudantes
pudessem, em determinada altura das suas vidas, conhecer e compreender as
expressões artísticas e ser motivados a criar eles próprios, não só os públicos
seriam incomparavelmente mais vastos, como profundamente mais sensíveis.
Os regimes articulado e
integrado constituirão certamente a forma mais capaz de gerar resultados. No
entanto, num contexto em que a oferta pública é tão limitada, a supressão do
regime supletivo funciona como um obstáculo para aqueles que não tiveram ou não
têm ainda a possibilidade de se dedicar integralmente ao ensino da música, mas
que, por gosto ou necessidade, desejam aprender um instrumento. No cenário
ideal, o supletivo seria sempre residual. Mas Portugal não atingiu ainda o
cenário ideal e tem vindo inclusivamente a perder terreno, na medida em que
também a formação com recurso aos conservatórios privados (os regionais) tem
vindo a ser fortemente subfinanciada o que diminui o acesso de jovens de todo o
país, particularmente das regiões onde não existe ensino especializado da
música público, a esse ensino.
II. Do talento e da aptidão
Independentemente, pois, do
que possamos julgar, no plano político ou científico, sobre os conceitos de
“aptidão” e “talento” artísticos, para os comunistas o factor relevante e
determinante é o “direito” à criação e fruição culturais e artísticas e a sua
democratização. O alargamento da base de formação gerará, também pelo percurso
de cada e pelo trabalho dos professores junto de cada um, uma elevação do número
e da qualidade dos jovens que sejam formados no ensino especializado.
Assim,
independentemente da concepção que tenhamos sobre o talento, sobre a sua
natureza, inata ou construída, a garantia do direito sobrepõe-se à inexistência
de aptidão. A disponibilização e mobilização de meios também pode demonstrar
talentos onde antes não se identificavam ou vislumbravam e a capacidade das
escolas para a sua detecção e captação, mesmo na educação especial, passa pelo
reforço dos meios para o cumprimento da Lei de Bases do Sistema Educativo logo
no que toca ao primeiro ciclo do básico. O PCP defende mesmo a obrigatoriedade
de frequência de um ano de pré-escolar, que também pode ter um papel
determinante na dimensão criativa do cidadão, bem como contribuir para “nivelar”
o patamar de conhecimentos e competências com que a criança ingressa no ensino
básico.
Em síntese, a resposta para a necessidade de elevar a qualidade do Ensino Especializado, passa necessariamente por medidas que contemplem também a quantidade. Ou seja, a aposta na qualidade do Ensino Artístico não pode ser entendida como uma resposta de nicho, de elite. Pelo contrário, deve ser uma resposta ampla, que parta da abordagem transversal do sistema educativo e que valorize a formação da cultura integral do indivíduo em todos os ciclos. A obrigatoriedade de frequência de pré-escolar, a introdução de componentes artísticas curriculares obrigatórias no primeiro ciclo do básico com recurso a professores coadjuvantes, o reforço do investimento público na rede do ensino especializado da música e o alargamento dessa rede, a valorização do trabalho e da carreira dos professores, a integração imediata de todos na carreira docente e a capacitação das escolas de ensino especializado para uma articulação efectiva e permanente com os restantes estabelecimentos de ensino e com estabelecimentos do primeiro ciclo, seriam passos para ultrapassar constrangimentos com que nos cruzamos.
O caminho inverso, o da desvalorização e
subfinanciamento, o da supressão do supletivo sem uma real resposta à ausência
deste, a diminuição ou desaparecimento do financiamento do regime articulado no
ensino ministrado nos “conservatórios regionais”, provocarão uma erosão da
qualidade da formação, degradarão a capacidade criativa das massas e limitarão
o ensino especializado da música às elites económicas do país.
4 comentários:
Viva!
Só não consigo perceber onde é que o recurso a escolas privadas financiadas pelo estado diminui o acesso dos jovens ao Ensino Especializado da Música. Se são em maior número, muito mais dispersas e mais baratas para o erário público do que os Conservatórios públicos, onde quer chegar?
O que diminui o seu acesso dos jovens e causa precariedade a docentes e não docentes, provocando meses de salário em atraso, é o sistema de financiamento e as suas ratoeiras cortadoras e retardadoras de fundos que impedem as escolas de aceitar muitos dos candidatos...
Em que parte do meu texto digo que as escolas privadas diminuem o acesso?
O que digo e que se o estado paga os professores e e´ tarefa do Estado assegurar o Ensino, valia mais nacionalizar o conjunto de escolas privadas que pretendem ser nacionalizadas.
Na minha opiniao, so´ uma rede publica pode assegurar a cobertura total. As escolas privadas sao o nucleo fundamental do nosso ensino especializado da musica, mas isso nao significa que a resposta seja a necessaria.
Em lado nenhum do meu texto digo que o privado esta a mais, mas o publico esta de facto a menos.
Alem disso, com o actual modelo de financiamento, os professores ganham mal, sao precarios, e a captaçao nao e´ a suficiente na medida em que muitos sao os que nao podem ter contacto com o ensino especializado da musica.
Julgo que isto sao evidencias. Se quis ver no meu texto um antagonismo entre o publico e o privado, entao acho que nao entendeu nada do que eu escrevi.
"a formação com recurso aos conservatórios privados (os regionais) tem vindo a ser fortemente subfinanciada o que diminui o acesso de jovens de todo o país"
O subfinanciamento é que diminui o acesso, homem!
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