As liberdades, direitos e garantias, por exemplo, nunca deveriam ser submetidos a referendo, na medida em que são parte constituinte da democracia. Ou seja, sem a expressão das minorias por via dessas liberdades, direitos e garantias, não se pode dizer que existe uma real democracia, independentemente da dimensão da maioria. A liberdade religiosa é um caso ilustrativo: o facto de a maioria do povo português ser cristão ou até católico não pode estender a todos as práticas, hábitos ou formas de culto desse grupo, apesar de maioritário.
Esse confronto ético-social esteve patente no referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Os comunistas sempre se opuseram ao referendo como forma de solucionar o problema pois independentemente dos motivos morais da maioria, nem que uma só mulher em Portugal quisesse ou fosse confrontada com a necessidade de proceder a uma interrupção voluntária de gravidez, teria, na opinião dos comunistas, direito a fazê-lo. A imposição da vontade moral não pode interferir com o direito concreto da mulher. Da mesma forma, sujeitar liberdades e direitos fundamentais de minorias a vontades de maiorias, parecendo profundamente democrático, pode afinal de contas não ser nada mais do que uma legitimação popular da vontade da classe dominante.
A utilização do referendo, na minha opinião deve ser circunscrita a opções colectivas que não envolvam directamente direitos, liberdades e garantias.
Surgem estas linhas a propósito de um suposto movimento a favor de um referendo à privatização da água. A água é um elemento natural, independente do Homem e da sociedade e não resulta de nenhum processo de transformação ou produção. A água não é passível de gerar concorrência, nem pode - por motivos sociais - converter-se em mercadoria pelo simples facto de não ser transaccionável por outro bem ou serviço. A água não tem valor porque o seu valor é infinito.
O BE e outros oportunistas da nossa praça vêm defendendo a realização de um referendo sobre a privatização da água. Ora, num contexto em que a direita e a grande burguesia tudo fazem para se apropriar desse precioso recurso natural, determinante para a vida, para os ecossistemas, para todas as actividades industriais, e para a economia, é inaceitável que alguém que se posicione na esquerda política aceite sequer colocar a possibilidade de privatizar a água. A aceitação de um referendo é uma espécie de uma aceitação incondicional do resultado. Ou seja, defender um referendo confiando num determinado resultado, é uma tremenda manifestação de oportunismo. É certo que é muito provável que um eventual referendo sobre a privatização da água tivesse um resultado negativo. Também é certo que as classes dominantes tudo fariam para ludibriar o povo e para lhe fazer crer que a privatização representaria um avanço social e económico num contexto de dificuldades económicas e financeiras.
Todavia, não podemos defender a validade do instrumento apenas quando o eventual resultado é favorável. A questão é de fundo. E de princípio. Ou seja: mesmo que uma maioria vasta pretendesse privatizar a água, mesmo que uma só pessoa pretendesse mantê-la pública, seria justo ou democrático retirar-lhe o direito ao livre acesso à água?
Há matérias cuja abordagem oportunista resulta numa profunda machadada no regime democrático e na compreensão política dos fenómenos. A esquerda portuguesa não deve estar apostada em pedir referendos para decidir sobre a privatização da água, deve estar empenhada com todas as suas forças no combate e na denúncia da privatização e dos seus efeitos. É caso para perguntar: se ganhar a privatização, passa a ser democrático que os pobres morram de sede ou fiquem sem acesso à higiene? Passa a ser justo negar o acesso livre à água a alguém? Passa a ser justo ou democrático, ou moralmente aceitável, que uma empresa lucre com um bem que é natural e substrato fundamental de vida?
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