sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Silenciar o PCP é ocultar os avanços da Comissão de Inquérito

Quem ler as notícias de jornal de dia 19 de Dezembro de 2014 sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito do BES/GES ficará com uma ideia muito distante daquela que na realidade se verificou. Então vejamos, para não variar, a comunicação social faz o papel que tem feito desde o início, desviar atenções para questões laterais e aproveitar para promover um membro específico da Comissão, dando resposta à estratégia interna de uma certa tendência de um certo partido, com o evidente apoio de um outro partido.

Ora, durante a audição de Álvaro Sobrinho, várias questões foram abordadas, mas arrisco a reduzir o texto às essenciais: o destino do dinheiro que o BESA solicitou ao BES e as imparidades associadas e os contornos dos negócios da ESCOM. Estranhamente, alguns partidos levantaram a dúvida sobre o papel da dívida de Angola no colapso do BES de 30 de Julho, parecendo querer validar a tese de Salgado, quando é mais do que sabido que o relatório e contas de 30 de Julho não constitui nenhuma provisão para a dívida de Angola, com excepção de uma pequena parcela por juros incobráveis.

Tanto o BE, como o PS, que aliás parecem preparar juntos a estratégia de inquérito, insistem em construir uma linha de inquérito judicializada, sempre alimentando a ilusão de que a esta comissão cabe apurar as responsabilidades pessoais e criminais de cada interveniente. A estratégia é liquidatária da Comissão, apesar de ser a que os jornais mais gostam, porque contribui para a ideia de que as comissões de inquérito não servem para nada. BE e PS, e PSD - com motivos diferentes - concentram o inquérito em responsabilidades individuais, dando ao inquérito contornos de interrogatório ao estilo de filme americano e com isso parecem querer substituir-se aos tribunais e à investigação judiciária. O resultado dessa linha de inquérito será, infelizmente, o habitual "as comissões de inquérito não servem para nada, ninguém vai preso." E assim será sempre que a expectativa constituída for essa, pelo simples facto de que não é para isso que servem as comissões de inquérito.

É habitual ver os jornais a apagarem o papel do PCP, tal como é habitual vê-los a fabricar factos. Mas o que se passou ontem e a forma como todos os jornais ignoram as denúncias que o PCP fez durante a audição com Sobrinho é mais ostensiva do que o normal silenciamento. Salgado já tinha dito, Sobrinho repetiu: a dívida do BESA ao BES foi para comprar obrigações do tesouro da República de Angola (1.5 mil milhões de dólares) e o restante foi para financiar empresas exportadoras portuguesas. O PCP denunciou quem eram essas empresas e disse os valores de empréstimos que o BESA fez a algumas delas. Sobrinho não confirmou porque invocou o sigilo bancário, mas não desmentiu.

Os jornais, estranhamente, continuam a afirmar que «os deputados não obtiveram resposta para a pergunta "para onde foi o dinheiro?"». Só podem ser retiradas três conclusões dessa consideração que surgem invariavelmente em todos jornais: ou os jornais querem esconder o destino do dinheiro, ou não querem permitir que se perceba que o PCP o denunciou naquela audição, ou ambas.

A forma como os órgãos de comunicação social ocultam o trabalho do PCP, não é só grave por ser demonstração da orientação política que dirige as redacções, mas também porque tolhe o serviço público que deveriam prestar. A ânsia de esconder o PCP leva-os a esconder também os factos que o PCP refere. Isso foi assim ontem, como foi assim desde a primeira audição.

Faço apenas uma breve e incompleta resenha:

- O PCP foi o primeiro a demonstrar que os problemas do BES não surgiram de repente, nomeadamente através da referência constante desde a primeira audição ao relatório da PWC de 2001 (que aliás requereu) - a comunicação social ignorou as referências que o PCP fez a esse relatório até que a RTP lhe teve acesso directo e agora que todos os grupos parlamentares usam essa referência já a divulgam;

- o PCP foi o primeiro partido a referir a importância das imparidades de crédito e da evolução das carteiras de crédito - a comunicação social ignorou até que outros partidos começaram a pegar no tema;

- o PCP foi o primeiro partido a questionar a forma como a dívida de Angola foi provisionada e durante muito tempo fê-lo sozinho - a comunicação social ignorou até que outros partidos começaram a pegar no tema;

- o PCP foi durante várias audições o único partido a pegar nas emissões de obrigações - a comunicação social ignorou até que o BE decidiu pegar, apesar de o BE o ter feito nos exactos termos em que o PCP o vinha fazendo ao longo de sucessivas audições;

- o PCP foi o primeiro partido a questionar o BES e o BdP sobre os procedimentos de avaliação de risco - a comunicação social continua a ignorar porque só na reunião com o BESA o PSD veio a pegar no tema.

Ontem, o PCP denunciou que o BES concedeu uma linha de crédito ao BESA e que essa linha de crédito originou uma dívida do BESA ao BES que actualmente está nos 2,7 mil milhões de euros porque uma parte havia sido emprestada pelo BESA ao Estado Angolano (1,5 mil milhões de USD) e outra parte a empresas exportadoras não desvendadas. Não desvendadas até que o PCP finalmente as desvendou, no seguimento do que alguma comunicação social (o Expresso) já tinha conseguido fazer. As ditas empresas exportadoras eram afinal de contas a ESCOM (Espírito Santo Commerce) e a Vaningo, entre outras que o Expresso já denunciara. Sucede porém que a ESCOM e a Vaningo são empresas ligadas ao Grupo Espírito Santo. A ESCOM recebeu um empréstimo de 308 milhões de euros, a Vaningo recebeu quase 200 milhoes e a Nazaki - empresa ligada à Sonangol e a Manuel Vicente - recebeu também cerca de 200 milhões.

Resta saber qual a parte desses empréstimos que foi paga. E se foi paga alguma parte, por que motivo então a dívida do BESA ao BES continua provisionada quase a 100% no Novo Banco?

Cada vez mais se percebe que os banqueiros se andaram a encher à custa de créditos concedidos a si próprios, sejam eles banqueiros em Angola, sejam na Suíça, Luxemburgo ou Portugal. Os mesmos banqueiros que te negam a ti o crédito para comprar casa, ou simplesmente para sobreviver, e que não te perdoam nem uma centena de euros de capital ou juros, atribuíam a si mesmos milhões de euros em créditos pelos quais nunca pagavam um tostão porque eles próprios decidiam não cobrar.

É um esquema perfeito: tu metes o dinheiro no banco; o banqueiro empresta o teu dinheiro a ele próprio; o banqueiro não paga o empréstimo ao banco que é dele; o banco não faz a cobrança porque o devedor é o dono do banco; o teu depósito desaparece; o Estado paga o teu depósito; o banqueiro desaparece com o depósito original.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

não mordem a mão de quem lhes dá de comer, enquanto lhes dá de comer

Quem menos respeito? o banqueiro, o patrão ou o ministro ao serviço do banqueiro e do patrão?
Se sei que o banqueiro, o patrão, o capitalista em geral, mais não faz senão prosseguir os seus objectivos assumidos: obter lucros através da exploração do trabalho alheio; já o mesmo não se pode dizer dos governantes, deputados, presidentes, que se colocam ao serviço dos capitalistas com o voto e o engano dos trabalhadores.

A espinha dorsal é um atributo que reputo fundamental para que determine o grau de respeito por alguém e se é verdade que muitos capitalistas não terão propriamente um carácter admirável, não hesito em dizer que o político que se dispõe a servir o capitalista usando a confiança do seu povo está muito aquém de qualquer conceito de carácter.

O PSD, o PS e o CDS, partidos que se alternam no poder, sempre realizando a mesma política e servindo, no essencial os capitalistas que, a cada altura, mais mandam, defendem banqueiros com vigor, exaltam o empreendedorismo e valorizam os grandes empresários. Lembro bem de como reagiram, principalmente PSD e CDS, quando em Junho de 2013, o PCP questionou a idoneidade de Ricardo Salgado para continuar à frente do BES. Lembro-me bem da raiva com que defendiam a todo o custo Ricardo Salgado e como faziam crer que qualquer crítica que o PCP lhe pudesse dirigir seria apenas preconceito de classe, uma espécie de ódio de classe. Aqui assumo: sinto mais repulsa pelo sabujo, pelo capataz, do que pelo banqueiro. E por que o digo?

Agora que Ricardo Salgado perdeu o poder, agora que o banqueiro caiu na desgraça, em condições cuja responsabilidades próprias não estão inteiramente apuradas, já nada importa aos deputados e aos ministros do PSD e do CDS, nem aos deputados do PS. Aqueles que andavam de mão dada com o banqueiro, aqueles que o defendiam a todo o custo, que o promoviam como figura de referência, que elogiavam o seu modelo de negócio e o seu papel fundamental na economia e aqueles que recebiam avultadas quantias de financiamento para campanhas políticas são os mesmos que agora mais ódio deixam transparecer no seu discurso, promovendo uma linha de intervenção inquisitória e achincalhante. A raiva fingida, a ofensa gratuita, a exaltada agressividade, dos vassalos ante o senhor caído é um espectáculo triste de se ver.

É degradante que patrões e banqueiros que acumularam milhões à custa de políticos submissos e do trabalho alheio venham ao parlamento vestir a pele de homens dignos e honestos. Mas é ainda mais repugnante ver os que em tempos áureos prestavam vassalagem, serem agora chacais a ferrar o dente na desgraça de quem lhes deu de comer.

É verdade que os políticos ao serviço dos grupos económicos não mordem a mão que lhes dá de comer. A lealdade, porém, é conceito demasiado limitado para quem mais não é senão mercenário. A lealdade desses ministros, deputados, não é, nem será nunca, ao homem, mas sim ao poder económico e realinha-se consoante se reconfigura o topo desse poder.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Homenagem a Urbano Tavares Rodrigues - Biblioteca Nacional

No dia 6 de Dezembro de 2014, o Sector Intelectual de Lisboa do PCP realizou uma Homenagem a Urbano Tavares Rodrigues com a participação de diversos convidados. Intervim na qualidade de eleito pelo PCP na Assembleia da República, tendo eu a responsabilidade de acompanhar a política de Cultura. Assim, deixo aqui a minha intervenção.
"
Camaradas, amigos,

A invenção da política na obra de Urbano Tavares Rodrigues não é uma necessidade, mas uma manifestação natural de um escritor que, tendo estado ombro-a-ombro com o povo português na resistência contra a ditadura fascista e testemunhado directamente, também com a sua literatura, as conquistas da revolução, não subordinou a liberdade criativa a nada, antes fez dela o valor supremo sublimado pelo substrato político em que essa criatividade se desenvolvia, com a aversão a obras de encomenda a ser expressão clara da forma como a liberdade na criação não foi tolhida pela concepção ideológica do mundo, antes - com essa liberdade e essa concepção ideológica - foi superada a dualidade entre forma e conteúdo, gerando um valor estético, artístico e social que alimenta em cada palavra a necessidade de elevação da consciência social, cultural e política do ser humano, das massas.
Nas suas palavras:
"Sou comunista e sou escritor e nunca obedeci a pedidos para fazer dos meus livros instrumentos de combate do PC, mas, como a minha ideologia é essa, ela projecta-se e essa projecção é útil neste momento, porque as massas necessitam de apoio dos intelectuais e eu estou a dá-lo embora dentro da minha linha, que é estética e intimista."
(Entrevista ao Jornal Público)

mais explícito ainda em "A Natureza do Acto Criador": "O romancista está empenhado em conhecer a realidade, dela participando, e em dar a conhecer aos outros aquilo que dela só ele pode conhecer, mesmo que seja uma fracção do real em perpétua transformação. Assim ele contribuirá também, sem fazer obra de encomenda, para a transformação dessa realidade."
Temas como o tempo, a morte e o amor, centros de gravidade de uma abordagem existencialista, projectam-se na expressão literária do romance, da novela, do conto ou do verso, numa integração do papel da arte e da literatura no contexto social, enquanto elemento e instrumento de emancipação social. (Apesar de o próprio ter dito numa entrevista que a conciliação entre existencialismo e comunismo era uma utopia, em 2011, em "A Natureza do Acto Criador" diz-nos afinal que "sequer as preocupações existenciais estão em radical oposição com uma concepção socialista da vida, antes nos inclinamos a crer que o existencialismo, par sobreviver, teria de desaguar no marxismo") A expressão de Urbano não decorre de uma auto-imposição ou de um eventual sentido de missão: a arte não se contém nem nas limitações do próprio, mas decorre, antes, do domínio das figuras, da acção e das personagens, aliado a uma necessidade de libertação, que não esteve isenta de preocupações com os aparentes conflitos entre a sua escrita, a respectiva autenticidade, e a escrita "esperada" :
"com a minha cultura universitária e cosmopolita (sejamos francos), com as minhas vivências de intelectual (que fez, de há muito, a sua opção ideológica, mas conserva o lastro de um certo "humanismo"), vivências que são diferentes - a isso não há que fugir - das de um operário ou de um camponês, o que eu escreveria seria provavelmente uma merda se forcejasse por substituir-me […] ao proletário. Se forçasse a nota da simulação. No entanto, com toda a força do meu projecto, desejo dar voz a esse proletário: integrar a sua voz no meu discurso."
(in As Pombas são Vermelhas)
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"Porque desejo participar - assim o consiga - na pesquisa de uma literatura nova, novíssima, popular e mágica, em que a qualidade poética, no que me respeita, não sofra declínio mas antes avanço, colocando-a ao serviço das classes trabalhadoras, das massas mais obscuras, da sua voz profunda, da sua revolução."
(Prefácio à 1ª Edição de Dissolução, 1975)

Urbano Tavares Rodrigues é um intelectual comprometido com a elevação da cultura das massas, com o progresso. A sua obra é, também por isso, comprometida, e nela ecoam a vida e a história recente do nosso povo e do nosso país.
Umas vezes nas personagens, cuja contradição íntima encontra o reflexo ao espelho das contradições sociais.
Outras no recurso a figuras no limiar do surrealismo para mais fundo fazer penetrar no peito do leitor a realidade.
Por vezes usando a realidade tal e qual, como em Dissolução em que insere "colagens": fitas gravadas e recortes de jornais, a dar, de forma imediata, conta do facto quotidiano, social e político.
No Alentejo, mas também em Lisboa.
O herói colectivo, mas também o homem comum.
E sempre, a Mulher.
Num processo em que a utilização da linguagem poética e a complexidade das figuras a que recorre não se posicionam na esfera de auto-valorização afastada das camadas populares.

É assim com os longos anos de resistência ao fascismo.
Desde:

- a violência da luta nos campos no Monte das Rosas (conto da obra Pedra no charco de 1958):

Foi nesse instante preciso que o dedo do oficial, mecanicamente, carregou no gatilho. Um espanto gelou a multidão de ganhões. O corpo abateu-se de repente, como um fantoche de cera.
Monte das Rosas (conto de Pedra no charco, 1958):

- à resistência dos jornalistas que se juntam para criar uma publicação - Acção Cultural - escrita «sem conivência com a mentira, sem louvaminhices, sem transigências, sem favores pessoais», de Os Insubmissos que não hão-de:
"esquecer os velhos sem esperança, nem os catraios com fome, nem estes cegos que tocam pelas ruas, nem os que morrem sem um queixume, quando formos nós a fazer congressos, e filmes, e exposições...Porque restaurar a verdade não basta. É preciso modificar a verdade."
(Os insubmissos, 1961)
- aos temas da prisão e da tomada de consciência, por exemplo, em Mesmo que Assim Seja (conto de "As Aves na Madrugada", de1959), onde Raimundo, preso, se debate com a sua própria convicção e capacidade acabando por resistir:
Enfim o sabia: não tinha medo, uma insuperável força, insuspeitada, como que estranha aos seus pobres membros, invisível, secreta segregação corrente do companheirismo de que ele era apenas um elo, permitia-lhe resistir. Vencera o duvidoso duelo consigo. Nada podiam já contra ele!
Mesmo que Assim Seja (conto de "As Aves na Madrugada", de1959)

É assim com as conquistas da revolução e os avanços da contra-revolução:
na cooperativa pedro soares: "entrar na Cooperativa Pedro Soares é como entrar num sonho povoado de chaparros, searas, terras de regadio, raros "montes" e casas dos baldios de outrora dispersos por quatro mil e quintenos hectares. (...) É como entrar num sonho, para dele sair, sete ou oito horas depois, em estado de choque. Porque ali existem, de verdade, formas de socialismo (e a linguagem é ainda a da Primavera de 1975), quando precisamente se inicia pelo país a tentativa de recuperação capitalista e a palavra, não só no Norte, mas até mesmo em Lisboa, é já tão outra."
(em As pombas são vermelhas)


Tudo isto implica uma consciência de classe e uma consciência sobre o papel do intelectual no percurso da humanidade. O intelectual não guia as massas, mas o intelectual comprometido, consciente da sua natureza e das potencialidades e limitações que ela acarreta, consciente de que é o proletariado, de facto, a classe revolucionária do actual momento histórico, compreende a sua inserção no movimento operário e na constituição de uma força que lhe possa imprimir momento linear vencendo a inércia que ainda o condiciona e, de certa forma, o aprisiona como classe explorada.
A intenção do autor existe mas não condiciona a expressão artística. É isso que elimina a clivagem entre a forma e o conteúdo e gera obras de valor artístico intrínseco, valor esse que se torna igualmente em valor social, elemento de superação das actuais circunstâncias históricas. A literatura de Urbano situa-se precisamente no limiar que permite tanto ao intelectual compreender a perspectiva socialista de Urbano, como ao operário compreender a necessidade de abraçar a "poesia" e de poder elevar-se cultural, social e politicamente através dela, "vasta, rica, variada, em ligação íntima e indissociável com o movimento operário". 
"Nem tudo o que componho e redijo será imediatamente perceptível e mobilizador, para as camadas trabalhadoras menos afeitas à leitura, mas admito, espero, aposto no amanhã, na elevação da cultura das massas. De resto, sem me violentar, situo-me sempre, natural, espontaneamente numa perspectiva socialista."
(em As Pombas são Vermelhas)
Condicionar a concepção de vastidão que Lenine naquela frase que referi acima e que Urbano cita em "As Pombas são Vermelhas" seria condicionar o próprio desenvolvimento do socialismo, senão contribuir mesmo para o seu definhamento.
"A criação artística é uma forma de intervir para a transformação do mundo, não apenas no plano cultural, mas pelos sentimentos, ideais, reflexão que provoca no homem e pela capacidade de reforçar a luta do homem para a transformação económica, social e política da sociedade.
Isto não significa que o artista que se bata politicamente com a sua arte tenha de optar por tao ou tal escola ou por tal ou tal tendência estética. Muito menos significa que o Partido pretenda impor uma tal opção.
O Partido não pretende hoje, nem pretenderia se dirigisse a política cultural do país, impor aos seus militantes e aos artistas em geral modelos estéticos ou escolas estéticas.
Nada mais prejudicial à criação artística que a submissão a ordens burocráticas ou patronais impondo à iniciativo do criador parâmetros estreitos que cortem a imaginação e o sonho.
Um partido como o nosso, capaz de todos os sacrifícios para libertar o homem, luta necessariamente também para libertar o artista. Quando a própria revolução é a realização de sonhos milenários, como poderia o nosso Partido, força revolucionária que é, cortar as asas ao sonho? (…) Modelo estético partidário é coisa que não existe."
(Intervenção de Álvaro Cunhal na primeira Assembleia do Sector de Artes e Letras de Lisboa, 1978)

Entre os escritores comunistas, a diversidade estética, estilística, é a ilustração prática do postulado de Álvaro Cunhal. E a prática é o critério da verdade. Urbano situa-se nessa dispersão estilística, dela decorrendo um vasto espectro de abordagens artísticas do marxismo que redundam no essencial na mesma inserção do artista no movimento progressista, no movimento revolucionário, não como farol, mas como sua parte constituinte e como generoso participante intelectual no reforço constante do potencial revolucionário do proletariado que emergirá como classe dominante tanto mais rápida e vigorosamente quanto maior for essa participação dos intelectuais, dos artistas e de outras camadas, muitas delas, também alvo de proletarização.
É o capitalismo que hoje demonstra com cada vez mais veemência a sua natural tendência para o monismo e o conservadorismo culturais e para a promoção de uma escola estética que substitui a reflexão pelo entretenimento e que, em quase todas as manifestações que promove, faz inserir uma perspectiva ideológica que cultiva os valores da classe dominante: o egoísmo, a competitividade, o individualismo, a naturalidade da exploração e da hierarquia na produção, a ambição narcísica como elemento de progresso, a negação da importância do outro.
A supressão da criação artística como um direito, como hoje testemunhamos e a consequente supressão da fruição como a outra face do direito à criação são resultado concreto e directo da reconfiguração do Estado levada a cabo à margem da Constituição da República Portuguesa no cumprimento do plano de reconstituição capitalista e monopolista que, desde 76 a esta parte vem ganhando volume, não sem a resistência dos escritores, dos artistas, dos intelectuais comprometidos, mas principalmente, não sem a resistência das massas trabalhadoras e do partido dos trabalhadores, partido dos intelectuais comprometidos, Partido Comunista Português.
A política de direita, forçada sobre o país tanto por PS, como por PSD, com ou sem o CDS, mas sempre atraiçoando as promessas eleitorais, ao longo dos últimos 38 anos, traduziu-se, não linearmente na desaceleração do movimento de elevação cultural das massas, condição que o PCP considera fundamental para a concretização da revolução, desde a apresentação em 64 à direcção do Partido de "Rumo à Vitória" por Álvaro Cunhal, depois espelhada também no Relatório ao VI Congresso, em 65.
A invenção da política na obra de um escritor comunista, cuja experiência e criação própria não surge sem o enquadramento colectivo e social, é um elemento que é tanto mais expressivo da riqueza da obra quanto menos forçado ou simulado, voluntária ou involuntariamente. Em Urbano Tavares Rodrigues, a invenção da política resulta da projecção na linguagem, nas figuras, acções e personagens, de um contexto que é o da sua apropriação individual e criativa da reflexão colectiva e da ideologia que lhe firma no horizonte, durante e até após a sua vida, o humanismo, pela construção do comunismo.
Não faz parte das tarefas de um comunista sobreviver até à Revolução, apenas que dê enquanto vivo tudo quanto possa para que a Revolução se concretize, segundo, creio, Sérgio Vilarigues. Urbano não só deu, como criou, e deixou na obra literária um legado que é combustível do fogo revolucionário e alimento para os homens de hoje e de amanhã. "

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Lei de Bases, Constituição e Concurso de Recrutamento - porque falham os concursos de professores?

A partir do momento em que o povo escreveu nas páginas da Constituição da República Portuguesa que ao Estado incumbe a responsabilidade de assegurar a todos o direito à Educação, através de uma rede pública de estabelecimentos de Ensino, e a partir do momento em que a Lei de Bases do Sistema Educativo concebe a rede pública de ensino como o conjunto dos estabelecimentos que cumpre o Ensino Público, laico, democrático, gratuito e para todos. Essa rede é da responsabilidade do Estado, é republicana, e independente de quaisquer interesses religiosos ou económicos. Tal como incumbe ao Estado assegurar a segurança das populações através das forças de segurança.

Essas responsabilidades acarretam a gestão de todo o Sistema Público de Ensino. O Estado que o gere deve garantir a formação adequada de professores, tal como faz com agentes policiais, e deve distribuir esses professores pelo território, tal como distribui os agentes policiais. A Escola é tanto um dever do Estado quanto é a Esquadra da PSP. Porque não ouvimos então, ano após ano, falar dos infindáveis e complexos problemas do concurso de colocação de outros profissionais - como os agentes de segurança - e ouvimos sistematicamente - ora pela voz de PS, ora de PSD, com ou sem o CDS - falar dos problemas incontornáveis dos concursos de recrutamento e colocação de professores?

Que motivos fazem do concurso de professores uma coisa tão complexa? Motivos técnicos? Motivos operacionais? Incapacidade de acolhimento das escolas? Má-vontade dos professores?

Na verdade, o único motivo por detrás da encenação anual da catástrofe de colocação de professores é económico e ideológico e serve a intenção de desfiguração da Escola Pública, de aprofundamento da escola dual, de clivagem cada vez mais funda entre as escolas de elite e as escolas de massas, criando as condições subjectivas para ir minando a confiança dos portugueses no concurso público de colocação e abrindo as portas à generalização das contratações por mecanismos do tipo "mini-concurso" ou "oferta de escola" ou mesmo de total liberalização das contratações, colocando nas mãos dos directores-gestores a escolha de cada um dos professores, moldando uma escola à semelhança de projectos pessoais ou de amizades, mas sempre moldando o que não pode ser moldado.

O Concurso de colocação e recrutamento é a peça chave, determinante, para que continue a fazer sentido dizer que existe um sistema público de ensino que assegura a todos a máxima qualidade, disponibilizando o conhecimento e a técnica gratuitamente a todos de forma absolutamente indiscriminada. Se se começa a aceitar - como de certa forma já vai sucedendo - que as escolas escolhem os seus professores e alunos, desistimos de Abril, da Constituição e da Lei de Bases de uma só penada. É a colocação de professores e estudantes com base única e exclusivamente em critérios objectivos (graduação profissional ou curricular, no caso dos professores e local de residência ou local de trabalho dos encarregados de educação no caso dos estudantes) que permite afirmar que não há triagem na escola pública, nem inter-escolas, nem intra-escola.

A partir do momento em que o professor deixar de ser colocado por concurso, a própria noção de rede - matriz da Escola Pública - se esboroa para dar lugar a uma noção de arquipélago pulverizado pelo mapa, em que as escolas ao invés de assegurarem todas a mesma qualidade a todos os estudantes, se distinguem pela qualidade que oferecem. Isso é desistir do projecto socialista e é aceitar que umas serão melhores que outras, mas é muito pior do que isso, é aprofundar o fosso entre as que já são "melhores" e as que já são "piores". Isso mesmo têm feito PS, PSD e CDS ao longo dos anos.

A suposta incompetência por detrás das falhas nos concursos mais não é senão a táctica que a direita - seja a velada, seja a assumida - vai usando para descredibilizar o mecanismo de concurso público para avançar no seu projecto de elitização e mercantilização do ensino. Ainda não chegámos ao dia em que o capital disputa a total das funções da polícia de segurança (apenas disputa alguns nichos rentáveis do serviço), nem chegámos ainda ao dia em que os tribunais podem gerar lucro suficiente para que o capital os queira. Mas quando chegarmos a esse dia, os concursos de colocação de polícias, de juízes, de magistrados do ministério público, serão a primeira coisa que começa a falhar. Deliberadamente, para ir amaciando o caminho por onde o capital pretende marchar, sobre os escombros dos serviços públicos que destrói para se apropriar dos seus espólios.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Reformas, há. Mas não são verdes.

A pretexto da chamada "Reforma da Fiscalidade Verde", muito importa ser dito, nomeadamente sobre o seu conteúdo e sobre a neutralidade fiscal que comporta, sendo uma neutralidade apenas para quem arrecada, mas sendo muito classista e penalizadora para algumas das camadas que pagam - e todos sabemos quais -, mas aquilo que, para já, me parece mais importante, por ser mais fundo e mais vasto que uma reforma fiscal e por ser um problema mundial e não apenas português, é a privatização do oxigénio que está em curso.

Desde os tempos da Tatcher que as "preocupações ambientais" passaram a integrar o arsenal dos instrumentos de consolidação e aprofundamento da exploração capitalista e os mecanismos e métodos de utilização desse instrumento vêm sendo, ao longo dos séculos, refinados. Longe vão os tempos em que o buraco na camada do ozono era provocado por moléculas sintetizadas pela actividade humana e longe vão os tempos do chamado "aquecimento global". Todavia, a tese central do capitalismo: a de que é preciso elitizar, mercantilizar e privatizar os serviços ambientais e os recursos naturais, mantém-se e, como tal, vai adaptando a doutrina oficial sobre ambiente, quer às exigências impostas pela evidência, quer às suas necessidades.

Vinga hoje a tese, que apesar de teoria está convertida em lei, de que o anidrido carbónico presente na atmosfera determina em grande medida a temperatura da mistura gasosa. Essa tese, todavia, apontava para um aquecimento global constante e, dada a não verificação da hipótese na realidade, rapidamente os "peritos" alteraram as agulhas para "alterações climáticas" que dá um bocado para tudo, quer faça frio, seca, chuva ou sol.

Não me demorarei sobre a dúvidas que tenho sobre a tese em si, nem sobre o facto de os climatólogos e paleo-climatólogos de todo o mundo se encontrarem persistentemente contra a ideia proto-religiosa de que é a concentração de CO2 que determina a temperatura da atmosfera terrestre, nem mesmo sobre o facto de o IPCC já ter sido várias vezes desmentido pela comunidade científica, nem dedicarei ao escândalo Climategate mais do que esta simples referência para que todos possam ler sobre ele. Também tentarei não aprofundar o descrédito total - reconhecido por todos os académicos honestos - do hockey stick, nem o facto de muitos dos "políticos" e "lobbyistas" do "climate change" continuarem a utilizá-lo quase como arma de terrorismo.

Escrevo estas linhas apenas para que nos questionemos sobre o que é, de facto, o mercado de emissões de CO2.
1. O que é o CO2?
2. O que é a mercantilização do CO2?
3. O que é a taxação do CO2, pelos estados ou por empresas?
4. O que é a gestão do mercado de licenças de emissão de CO2?
5. A mistura gasosa atmosférica é igual ao longo das eras?
6. De que forma pode o ser humano influenciá-la na sua composição?
7. De que forma a composição da mistura determina a temperatura?

1. O CO2 é um gás presente na atmosfera terrestre pela simples actividade biológica e geológica. Na prática, é o resultado da reacção de combustão de oxigénio sempre que tal reacção se dá entre o oxigénio e um composto orgânico. Além disso, muito do CO2 aprisionado no interior da crusta e do manto é de origem inorgânica e ai se encontra em fluídos hidrotermais ou em bolsas de gás no magma ou na rocha. O CO2 emitido pela actividade biológica é, na prática o resultado a utilização do oxigénio nos processos de respiração de grande parte dos seres vivos, onde se incluem todos os animais, plantas e muitas algas e bactérias. O CO2 emitido pela Terra resulta do aprisionamento desse gás desde há milhões de anos no interior da rocha ou do manto. O CO2 emitido pela indústria resulta, geralmente, de qualquer processo de combustão realizado.

2. A mercantilização do CO2 é, como tal, a mercantilização do produto dos processos de combustão, entre os quais a respiração dos seres vivos.

3. A taxação do CO2 é a aplicação de taxas ao consumo de oxigénio e libertação de anidrido carbónico, geralmente, através da queima de compostos orgânicos ou derivados.

4. A gestão do mercado de licenças de emissão é a colocação na esfera dos mecanismos de mercado da emissão de CO2, ou seja, da utilização de O2. Com Quioto e protocolos seguintes, a gestão das emissões passa a ser regulada pelo mercado internacional de compra, venda e transacção de licenças de emissão de CO2, ou seja, compra, venda e transacção de licenças para a utilização de oxigénio.

5. A mistura gasosa atmosférica é variável e está intimamente relacionada com o grau de actividade geológica e vulcânica do planeta, bem como com a actividade biológica. A existência de muito anidrido carbónico favorece e estimula o surgimento de grandes massas vegetais e florestais e essas, por sua vez, consomem-no da atmosfera, utilizando o Carbono em compostos orgânicos e libertando o O2. A escassez de massas vegetais, a contrário, diminui a capacidade do globo de "reciclar" o CO2, de produzir novos compostos orgânicos lenhosos e de libertar o O2. Num raciocínio simplista podemos basicamente descrever a equação de um sistema equilibrado como uma relação entre as emissões de CO2 e a necessidade de massas vegetais. Para mais emissões, mais massa vegetal. A questão que se coloca nos dias de hoje, não é só, portanto, a de diminuir emissões (porque isso implica dar por adquirido que se inicia um processo de limitação do desenvolvimento industrial e, pior, em dar por adquirido que não pode existir mais massa vegetal no planeta), mas é antes de mais a de equilibrar a massa vegetal com a massa animal e suas actividades - onde se inclui a actividade humana. O capitalismo não só não permite - pela sua natureza predatória e expansionista - que a massa vegetal aumente, como ainda se aproveita da sua escassez, mercantilizando o direito a consumir oxigénio. Primeiro para um conjunto de actividades, gradualmente estendendo a taxação ou penalização do consumo de oxigénio a outras, sempre recaindo sobre a ponta final do processo produtivo: o trabalhador.

6. O ser humano tem várias formas de influenciar a composição da mistura gasosa terrestre que actualmente se situa nos cerca de 79% Nitrogénio (Azoto); 20% Oxigénio e menos de 1% de outros gases, sendo que o CO2 não ocupa em percentagem massa/massa mais de 0,03 a 0,04 do total da massa atmosférica. A actividade humana, pela sua simples respiração contribui - em pequeníssima parte - para o total do CO2 presente na atmosfera e a actividade económica, principalmente a que implica combustão de compostos orgânicos, contribui igualmente. Ou seja, se o homem limitar o recurso a combustíveis orgânicos, pode diminuir o volume de emissões de CO2. Todavia, o volume de CO2 presente na atmosfera pode ser igualmente diminuído pela ampliação das florestas e pelo cultivo de mais plantas ou outros organismos fotossintéticos. Também algumas reacções químicas podem aprisionar o CO2 em formações cristalinas, nomeadamente através da cristalização de carbonatos. No entanto, a solução que o capitalismo nos impõe é a de pagar para usar oxigénio. Porque será?

7. Toda a teoria das alterações climáticas - que é praticamente lei na comunidade pseudo-científica que disputa no plano global linhas de financiamento de milhões de euros para provar uma tese - se baseia na regra da proporção directa entre a presença de CO2 e a temperatura. A física, todavia, nomeadamente a equação de Van der Waals diz-nos que é verdade que a composição da mistura gasosa determina a temperatura, mas não atribui ao CO2 uma capacidade de influenciar de forma sensível uma atmosfera inteira, numa presença de 0,03% m/m nem lhe atribui mais influência no efeito estufa que o vapor de água ou a água no estado gasoso. No entanto, é evidente que a Humanidade tem capacidade de regular a composição gasosa em proporção necessária para alterar qualquer tendência que, a ser verdade a tese da relação entre CO2 e temperatura, se verifique ser prejudicial à sua presença enquanto espécie no globo. A não consideração dessas possibilidades (ampliar a massa vegetal, aprisionar CO2 em carbonatos) significa que o capitalismo gerou todo um novo mercado com grandes ambições - o das licenças de emissões, que são na prática licenças para consumir oxigénio. Ora, tendo em conta que o consumo de oxigénio é uma necessidade incontornável de todos os seres humanos e de praticamente todos os seres vivos de que depende o equilíbrio do ecossistema, não vos parece perigoso mercantilizar essa necessidade e deixar a sua gestão nas mãos de um sistema especulativo tipo bolsa de valores?

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Notas rápidas sobre o ensino especializado da Música em Portugal - texto para o simpósio "caminhos do ensino da música"



I. Da quantidade e da qualidade

O Ensino Especializado das Artes em Portugal, e em particular o Ensino Especializado da Música, está sujeito ao mesmo conjunto de constrangimentos que o Ensino dito regular. Isso significa, todavia, que está ainda mais fragilizado que as vias ditas “comuns” na medida em que a experiência de ensino especializado não se generalizou nem consolidou à mesma escala que as restantes componentes da Escola Pública. Ou seja, o Ensino Especializado da Música, pela sua reduzida expressão territorial na Escola Pública, pela subvalorização dos seus trabalhadores e professores, pela insuficiência do investimento para a sua ampliação e fortalecimento e pelos impactos tremendos resultantes do chamado plano de “Refundação do Ensino Artístico”, (apresentado pelo ministério liderado por Maria de Lurdes Rodrigues) encontra-se ameaçado na sua qualidade, democraticidade e mesmo na sua existência enquanto resposta pública.

A existência de um reduzido número de escolas públicas de ensino especializado da música: Instituto Gregoriano, Conservatório Nacional, Conservatório de Coimbra, Conservatório do Porto, Conservatório de Braga e Conservatório de Aveiro que se encontram distribuídas apenas pelo Litoral e do Tejo para cima é um factor que impede a concretização de uma política de formação musical e democratização do ensino, que dificulta a detecção de talentos baseada numa formação precoce massificada e que não permite o encaminhamento e acompanhamento dos jovens que busquem a formação profissional e académica em Música, nem tampouco detectar os jovens que, pela suas características próprias, possam revelar especial talento para a execução e interpretação musical ou composição.

Ao mesmo tempo, um investimento no Ensino Especializado da Música muito aquém das necessidades, não apenas degrada o património de saberes acumulado ao longo de gerações, como dificulta a capacidade de intervenção territorial das escolas de música e limita a qualidade do ensino ministrado nas instalações públicas, quer seja por falta de meios materiais ou mesmo pela desvalorização constante a que estão sujeitos os trabalhadores e professores do ensino artístico – precariedade laboral, desvalorização salarial -. Para compreender o contexto nacional e o posicionamento que o meu Partido assume é necessário também ter em conta o patamar de desenvolvimento do Ensino Especializado, conhecer as suas limitações e eliminar confusão e mistura de conceitos e de práticas que em nada contribuem para o aprofundamento do ensino da música e para a apropriação da técnica e da arte pela população. 

Em primeiro lugar, o reconhecimento de que a resposta pública está aquém do necessário. Em segundo lugar, reconhecer o papel que o ensino supletivo – apesar de não ser a resposta para o desenvolvimento e para o futuro – desempenha num contexto em que a resposta articulada e integrada é limitada. Em terceiro lugar, identificar o que têm sido as práticas e incursões no âmbito da educação musical no primeiro ciclo e distinguir claramente o que é ensino da música do que é o contacto com a música que se tem nas chamadas “actividades de enriquecimento curricular”.

A lei de bases do Sistema Educativo contém as respostas para grande parte dos problemas com que o país se confronta no âmbito do ensino especializado das artes, pois um dos principais é precisamente a base curta da pirâmide formativa que impede uma formação artística de massas, que não eduque apenas “públicos” mas que, essencialmente eduque “criadores” que por isso se tornarão “públicos”.

 A lei de bases assegura uma formação obrigatória e plenamente massificada de todos os que frequentam o ensino básico, nomeadamente no plano da música e das artes. No entanto, até hoje, nenhum Governo cumpriu esse desígnio da lei, nenhum Governo dotou as escolas do ensino básico dos professores em regime de coadjuvação que pudessem elevar o ensino artístico e o ensino da música ao patamar da dignidade. A opção de gerar uma oferta facultativa através de professores ainda mais desvalorizados que os restantes, através das “AEC” tem vindo a revelar-se prejudicial à elevação do conhecimento artístico da população por motivos vários que não podemos detalhar nas linhas estreitas de que dispomos.

A possibilidade de criar estabelecimentos de ensino secundário especializados foi também subaproveitada no plano público e é hoje colmatada pela criação de cursos de índole profissional ou profissionalizante. Se por um lado, o surgimento desses cursos demonstra o interesse que os jovens portugueses têm pelo ensino da música e o fascínio colectivo que o nosso povo tem pela criação e fruição culturais; por outro lado, não dá resposta plena à formação académica dos jovens, já que são cursos orientados para a inserção no mercado de trabalho, não sendo muitos deles sequer artísticos, contemplando prioritariamente os aspectos técnicos da formação. 

O alargamento da resposta pública (por via da abertura ou criação de novas instituições ou pela nacionalização das escolas privadas dispostas a tal), nomeadamente do número de estabelecimentos, é uma condição essencial para a elevação da qualidade/quantidade do ensino especializado da música. Tal como nos dizem as leis da dialéctica, existe uma ligação inquebrável entre qualidade e quantidade: o alargamento da base de captação e o alargamento da formação de nível secundário representariam igualmente o surgimento de mais artistas/intérpretes de elevado nível. Tal é válido para o conjunto das artes, da dança à música, passando pelas artes plásticas. Se todos os estudantes pudessem, em determinada altura das suas vidas, conhecer e compreender as expressões artísticas e ser motivados a criar eles próprios, não só os públicos seriam incomparavelmente mais vastos, como profundamente mais sensíveis.

Os regimes articulado e integrado constituirão certamente a forma mais capaz de gerar resultados. No entanto, num contexto em que a oferta pública é tão limitada, a supressão do regime supletivo funciona como um obstáculo para aqueles que não tiveram ou não têm ainda a possibilidade de se dedicar integralmente ao ensino da música, mas que, por gosto ou necessidade, desejam aprender um instrumento. No cenário ideal, o supletivo seria sempre residual. Mas Portugal não atingiu ainda o cenário ideal e tem vindo inclusivamente a perder terreno, na medida em que também a formação com recurso aos conservatórios privados (os regionais) tem vindo a ser fortemente subfinanciada o que diminui o acesso de jovens de todo o país, particularmente das regiões onde não existe ensino especializado da música público, a esse ensino.

II. Do talento e da aptidão

Independentemente, pois, do que possamos julgar, no plano político ou científico, sobre os conceitos de “aptidão” e “talento” artísticos, para os comunistas o factor relevante e determinante é o “direito” à criação e fruição culturais e artísticas e a sua democratização. O alargamento da base de formação gerará, também pelo percurso de cada e pelo trabalho dos professores junto de cada um, uma elevação do número e da qualidade dos jovens que sejam formados no ensino especializado. 

Assim, independentemente da concepção que tenhamos sobre o talento, sobre a sua natureza, inata ou construída, a garantia do direito sobrepõe-se à inexistência de aptidão. A disponibilização e mobilização de meios também pode demonstrar talentos onde antes não se identificavam ou vislumbravam e a capacidade das escolas para a sua detecção e captação, mesmo na educação especial, passa pelo reforço dos meios para o cumprimento da Lei de Bases do Sistema Educativo logo no que toca ao primeiro ciclo do básico. O PCP defende mesmo a obrigatoriedade de frequência de um ano de pré-escolar, que também pode ter um papel determinante na dimensão criativa do cidadão, bem como contribuir para “nivelar” o patamar de conhecimentos e competências com que a criança ingressa no ensino básico.

III. Da política

Em síntese, a resposta para a necessidade de elevar a qualidade do Ensino Especializado, passa necessariamente por medidas que contemplem também a quantidade. Ou seja, a aposta na qualidade do Ensino Artístico não pode ser entendida como uma resposta de nicho, de elite. Pelo contrário, deve ser uma resposta ampla, que parta da abordagem transversal do sistema educativo e que valorize a formação da cultura integral do indivíduo em todos os ciclos. A obrigatoriedade de frequência de pré-escolar, a introdução de componentes artísticas curriculares obrigatórias no primeiro ciclo do básico com recurso a professores coadjuvantes, o reforço do investimento público na rede do ensino especializado da música e o alargamento dessa rede, a valorização do trabalho e da carreira dos professores, a integração imediata de todos na carreira docente e a capacitação das escolas de ensino especializado para uma articulação efectiva e permanente com os restantes estabelecimentos de ensino e com estabelecimentos do primeiro ciclo, seriam passos para ultrapassar constrangimentos com que nos cruzamos. 

O caminho inverso, o da desvalorização e subfinanciamento, o da supressão do supletivo sem uma real resposta à ausência deste, a diminuição ou desaparecimento do financiamento do regime articulado no ensino ministrado nos “conservatórios regionais”, provocarão uma erosão da qualidade da formação, degradarão a capacidade criativa das massas e limitarão o ensino especializado da música às elites económicas do país.