A partir do momento em que o povo escreveu nas páginas da Constituição da República Portuguesa que ao Estado incumbe a responsabilidade de assegurar a todos o direito à Educação, através de uma rede pública de estabelecimentos de Ensino, e a partir do momento em que a Lei de Bases do Sistema Educativo concebe a rede pública de ensino como o conjunto dos estabelecimentos que cumpre o Ensino Público, laico, democrático, gratuito e para todos. Essa rede é da responsabilidade do Estado, é republicana, e independente de quaisquer interesses religiosos ou económicos. Tal como incumbe ao Estado assegurar a segurança das populações através das forças de segurança.
Essas responsabilidades acarretam a gestão de todo o Sistema Público de Ensino. O Estado que o gere deve garantir a formação adequada de professores, tal como faz com agentes policiais, e deve distribuir esses professores pelo território, tal como distribui os agentes policiais. A Escola é tanto um dever do Estado quanto é a Esquadra da PSP. Porque não ouvimos então, ano após ano, falar dos infindáveis e complexos problemas do concurso de colocação de outros profissionais - como os agentes de segurança - e ouvimos sistematicamente - ora pela voz de PS, ora de PSD, com ou sem o CDS - falar dos problemas incontornáveis dos concursos de recrutamento e colocação de professores?
Que motivos fazem do concurso de professores uma coisa tão complexa? Motivos técnicos? Motivos operacionais? Incapacidade de acolhimento das escolas? Má-vontade dos professores?
Na verdade, o único motivo por detrás da encenação anual da catástrofe de colocação de professores é económico e ideológico e serve a intenção de desfiguração da Escola Pública, de aprofundamento da escola dual, de clivagem cada vez mais funda entre as escolas de elite e as escolas de massas, criando as condições subjectivas para ir minando a confiança dos portugueses no concurso público de colocação e abrindo as portas à generalização das contratações por mecanismos do tipo "mini-concurso" ou "oferta de escola" ou mesmo de total liberalização das contratações, colocando nas mãos dos directores-gestores a escolha de cada um dos professores, moldando uma escola à semelhança de projectos pessoais ou de amizades, mas sempre moldando o que não pode ser moldado.
O Concurso de colocação e recrutamento é a peça chave, determinante, para que continue a fazer sentido dizer que existe um sistema público de ensino que assegura a todos a máxima qualidade, disponibilizando o conhecimento e a técnica gratuitamente a todos de forma absolutamente indiscriminada. Se se começa a aceitar - como de certa forma já vai sucedendo - que as escolas escolhem os seus professores e alunos, desistimos de Abril, da Constituição e da Lei de Bases de uma só penada. É a colocação de professores e estudantes com base única e exclusivamente em critérios objectivos (graduação profissional ou curricular, no caso dos professores e local de residência ou local de trabalho dos encarregados de educação no caso dos estudantes) que permite afirmar que não há triagem na escola pública, nem inter-escolas, nem intra-escola.
A partir do momento em que o professor deixar de ser colocado por concurso, a própria noção de rede - matriz da Escola Pública - se esboroa para dar lugar a uma noção de arquipélago pulverizado pelo mapa, em que as escolas ao invés de assegurarem todas a mesma qualidade a todos os estudantes, se distinguem pela qualidade que oferecem. Isso é desistir do projecto socialista e é aceitar que umas serão melhores que outras, mas é muito pior do que isso, é aprofundar o fosso entre as que já são "melhores" e as que já são "piores". Isso mesmo têm feito PS, PSD e CDS ao longo dos anos.
A suposta incompetência por detrás das falhas nos concursos mais não é senão a táctica que a direita - seja a velada, seja a assumida - vai usando para descredibilizar o mecanismo de concurso público para avançar no seu projecto de elitização e mercantilização do ensino. Ainda não chegámos ao dia em que o capital disputa a total das funções da polícia de segurança (apenas disputa alguns nichos rentáveis do serviço), nem chegámos ainda ao dia em que os tribunais podem gerar lucro suficiente para que o capital os queira. Mas quando chegarmos a esse dia, os concursos de colocação de polícias, de juízes, de magistrados do ministério público, serão a primeira coisa que começa a falhar. Deliberadamente, para ir amaciando o caminho por onde o capital pretende marchar, sobre os escombros dos serviços públicos que destrói para se apropriar dos seus espólios.
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