quarta-feira, 27 de março de 2013

A produção cultural e artística e a resistência

Embora não possamos cristalizar em torno do conceito gramsciano de "hegemonia", tal concepção não pode ser totalmente colocada de lado na avaliação da correlação de forças materiais e imateriais de cada momento histórico. A luta de classes não é um episódio, é um processo permanente, uma dialéctica constante e o para o seu estádio de desenvolvimento contam inúmeras variáveis interdependentes. Nesse conjunto vasto de variáveis, o desenvolvimento dos meios de produção e das forças sociais (capital e trabalho) serão certamente as determinantes. Mas a hegemonia, o contexto de cada momento, as relações sociais e as percepções individuais e colectivas que delas se façam são factores que, não determinando o curso da História no sentido largo, determina a sua precipitação, e as tendências mais episódicas.

Se não é certamente possível alterar a hegemonia antes de alterar as relações sociais, também não é possível alterar as relações sociais sem alterações na hegemonia. Esta é a verdadeira dimensão da dialéctica e do materialismo dialéctico. 

Na permanente tensão, mesmo no contexto de diluição da luta de classes na doutrina dominante ou na sua total subversão pelos instrumentos de domínio ideológico, a hegemonia não elimina a existências das correntes resistentes, embora tenda a esmagá-las gradualmente. O grande problema é que a classe dominante, a burguesia, ao consolidar o seu domínio ideológico vem conseguindo um compromisso de colaboração com franjas do proletariado mais afastado do processo de transformação e do operariado e, ao mesmo tempo, a atenuação da ideia central de "luta de classes" entre algumas parcelas do proletariado e dos trabalhadores. Isso não significa que não existam forças que persistem na difusão da perspectiva ideológica oposta e que, boa parte do operariado, organizada em sindicatos e partido de classe, forças não abraçadas pela hegemonia, mas resistindo a esse domínio imposto pela classe dominante, promovendo uma "hegemonia" circunscrita, ideologicamente subversiva e resistente. 

É essa resistência de classe, organizada ou espontânea e gradualmente consolidada, que confirma a existência de brechas na hegemonia e que, mesmo em contexto de domínio da burguesia, pode alcançar conquistas significativas, em função do grau de envolvimento das massas. O abatimento social das camadas intermédias e do proletariado colaboracionista, por força do processo de acumulação capitalista, gera mais um potencial efluente que desagua nesse largo rio da luta, que entra cada vez mais em regime turbulento e quase torrencial.

Mas servem as linhas acima, não tão curtas quanto desejado, apenas para introduzir umas breves notas sobre a resistência cultural e a importância da livre fruição e criação culturais e artísticas, tão ofendidas que são pela classe dominante, em Portugal, ao longo dos anos, pelos sucessivos governos PS, PSD e CDS. Que objectivos prossegue a política de asfixia às artes e à cultura em Portugal? O economicismo e a falta de recursos financeiros são o recorrente pretexto e, por recorrente, a mais difundida mentira. Na verdade, apenas 20 milhões de euros são afectos ao apoio às artes em Portugal, sendo que 4,5 milhões são distribuídos em acordos indirectos, 5,5 milhões distribuídos em apoios directos e 10 milhões distribuídos para a produção cinematográfica. 

Esses recursos são provenientes, não dos impostos dos portugueses mas de taxas específicas aplicadas sobre o consumo de bens culturais e sobre os jogos da Santa Casa da Misericórdia. Na verdade, praticamente não existe qualquer afectação de receita fiscal a esta função do Estado prevista na Constituição da República Portuguesa. As funções culturais do Estado não significam que o Estado deva ser programador cultural, apesar de poder ter esse papel residual no panorama nacional. Antes significam que o estado deve assegurar a liberdade de criação e de fruição culturais e artísticas. 

A classe dominante, através dos governos ao seu serviço, tem vindo a aplicar a política inversa: coloca o Estado na figura de programador oficioso, promovendo uma cultura de regime, neutralizante, kitsch e mercantil; enquanto esmaga a possibilidade do cidadão criador, da participação popular na criação artística e na fruição da produção própria e alheia. Os recursos do Estado são afectos a mercados livreiros, às chamadas indústrias criativas, às produções artísticas do vazio e do inútil, às figuras de proa de uma arte complacente e parasita do regime capitalista.

A arte é um valor humano e social assim que toca o outro e a sociedade. A arte e a cultura são elementos que compõem a hegemonia, contribuem para a sua consolidação ou corroem-na, abrindo o caminho à emancipação. A criatividade artística precede muitas vezes a própria criatividade no processo produtivo e na vida social e, a arte é também por isso um valor social inestimável e desempenha um papel crucial na evolução das relações sociais e no progresso da Humanidade. É a visão livre do mundo, a sua interpretação sem limites, dogmas ou imposições estéticas, formais ou económicas que permite também abrir a janela para o futuro. Em ideia e em sonho, em tintas ou em movimentos, em sons ou esculturas, materializa-se a criatividade que está também na base do avanço social e humano. 

A asfixia imposta às estruturas de criação artística, o silenciamento e a censura financeira aplicada visam com clareza calar as vozes da resistência e da criatividade. Visam calar a liberdade e a alternativa. Visam alargar o mercado e a hegemonia ideológica do capital, visam fechar a janela do futuro.

Mas abriremos sempre, nem que seja a punho, as janelas necessárias, não para vermos ao longe o futuro, mas para nele caminharmos erguidos, livres e iguais.

1 comentário:

Sérgio Ribeiro disse...

Excelente texto.
Sem comentários?!...
Ao menos este, e a informação de que foi lido, mais de uma vez, impresso, arquivado num dossier... não de arquivo morto. De consulta.

Um abraço forte